segunda-feira, 22 de junho de 2009


Moonlight Serenade


A Era da Televisão

    Primeiro chegou o aparelho, meio escondido dentro de um móvel com portas, que – como enfatizou bem o Padrinho, enxugando o suor da testa, ao depositá-lo no chão com o seu ajudante – deveriam permanecer fechadas, sempre que não houvesse alguém o assistindo. Talvez preferisse mesmo ficar escondido por ser tímido e jovem, e um tanto constrangido por figurar entre os já bem acomodados móveis da sala dos meus avós. De início, ficamos olhando aquilo com a estranheza dos primeiros primatas que presenciaram o surgimento do fogo, ou daquele obelisco no 2001 do Kulbrick. Por via das dúvidas, os velhos deixaram-no ali, quieto, fingindo nem vê-lo. Afinal, ainda não sabiam bem com o quê estavam lidando.

Nós, as crianças, porém, e principalmente a irrequieta Bete, com a curiosidade natural dos que não têm compromisso com coisa nenhuma, começamos a sondar o estranho artefato.

Lembro que, numa tarde chuvosa, em que estávamos todos por ali, alguém, não recordo direito quem, falou: – Olha ali, a gente bem pequenininha, parece que estamos dentro da tv. E, dali em diante, começamos a nos divertir com o reflexo de nossas vidas no vidro, narrando o que estava acontecendo de fato, misturado com algumas invencionices para dar mais graça.

Meu avô – um grande flautista, escritor, dono de cinema e passador de filmes pelas cidades do interior gaúcho –, que havia ficado semiparalítico depois de um derrame, mas que mantinha uma imaginação sempre acesa, já havia decidido que, além da completa fidelidade ao rádio, a sua televisão continuaria a ser a enorme janela, onde se postava diariamente observando o quê acontecia e quem passava pela Silveiro.

O que não era pouca coisa, considerando que por ali subia e descia quase todo o povo do morro, com seu jeito e colorido peculiar, o pessoal do entorno, claro, jogadores de futebol, já que à frente ficava a antiga sede do Colorado, os Eucaliptos, e, pouco tempo depois, até grandes artistas nacionais e o próprio Presidente da República (esses últimos de carro, evidentemente) em direção à primeira emissora – a TV Piratini – lá no alto da rua.

Voltemos, porém, à simpática salinha. Quando víamos a vida, a simples vida, no vidro do aparelho, era como se a víssemos através de uma bola de cristal, só que no tempo presente, mas tão mágico quanto. Parecia história. Quando estávamos em plena brincadeira e chegava alguém, era uma gritaria. A pessoa passava a fazer parte do “filme”.

Quando os adultos não estavam por perto e nós ficávamos ali, frente a frente com ela, partíamos, em expedição, tentando decifrar o mistério da caixa de válvulas. Afinal, mesmo ainda muda daquele jeito, dava pra sentir que prometia, que algo estava para acontecer, um mundo de maravilhas, como o espelho de Alice. Os adultos, distraídos por bobagens, como sempre – menos o meu avô, que sempre foi ligado no que interessa –, não se davam conta. A nós, cabia fuçar. Ouvíamos, cheirávamos, apagávamos e ligávamos mil vezes o aparelho, observando atentamente o seu interior, o esqueleto exposto, e nada...

Não sei se a coisa demorou tanto, que se chegou a perder as esperanças. Mas sei que quando as primeiras transmissões finalmente entraram mais ou menos regularmente no ar, percebemos que havíamos sido logrados: o aparelho era uma porcaria. E como os adultos ainda suspeitavam que afinal a tal da televisão pudesse não ser aquilo tudo, a possibilidade de um novo aparelho sequer foi levantada. Acho que meu padrinho dessa vez iria se assegurar das chances daquilo funcionar antes de se jogar numa nova aventura de consumo. Então, com o defunto ali e sem solução – afinal, quem é que se interessaria por aquele trambolho? – a Bete teve mais uma de suas brilhantes idéias: que tal tirar aquela parte inútil das válvulas e fazermos dele um teatro? Como costumávamos fazer nosso teatro de sombras, com lençóis e lanternas...

E assim foi feito. Arrebanhamos todos os “atores” que pudemos pela casa: as marionetes feitas de papel machê, bonecas, bichos de pelúcia, coisas da casa, como caixas de fósforos, a lanterna do antigo teatro, etc. O público, como sempre, era composto pelos pais, avós, tios e visitas.

Ficamos de donas da telinha até a chegada do novo aparelho. Então, a Televisão começou mesmo a acontecer.

Meu avô, no entanto, nunca traiu o rádio; e, depois de algumas tentativas, voltou-se com fé renovada, e definitivamente, àquele.



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